A fome e o fogo de Isaura
“Dizem que foi a Fome que comeu o juízo de Isaura” - sussurrou uma vizinha à sua comadre, no meio daquela montoeira de gente na frente da casa de porta e janela que, pela primeira vez, recebe visita de carro. E foram logo três: o dos bombeiros, o SAMU e o camburão. Todos eles com as luzes ligadas, minha filha, como se fosse noite de Natal.
Todo mundo se espichava, querendo escorrer pro lado de dentro, mas casa que só tem uma entrada de porta e janela, parede com tinha velha e marca de fogão de carvão é escura demais.
Alguém disse que viu vermelho nas cinzas do chão queimado e batido, eu mesma não vi foi nada, afogada no meio daquele povo todo, me livrando da cotovelada do homem de farda que tentava afastar a gente da nossa própria realidade. Vê se pode! Não vi nesse dia, mas já ouvi muito lamento vindo dali das banda de Isaura e Mané Cuíca, ah, se vi!
E o barulho de lá, eu conheço bem mais do que queria porque também é o mesmo que voltou aqui. O rói-rói da barriga que não sente mais vergonha de mostrar a fome, já sentiu, dona? O corpo que se arrasta frio e suado pelo terreiro, capenga, sem força de nada. A cuia de farinha tacada com ódio no chão porque nem sua função de guardar o farelo mais não cumpre. A garapa que num garante mais energia nenhuma.
“Endoidou, endoidou”
Endoidou foi nada! Usou foi o último pingo de juízo que lhe restava, bebeu a dose final de desespero, cuspiu e tocou fogo nessa vida. Cinzas.