“Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida"
A dona dessa frase é Santa Rita Pescadeira, personagem de Torto arado, de Itamar Vieira Júnior.
No livro, a encantada, que já viu tanto, escolhe montar mulheres que a vida fez embrutecer. Santa Rita Pescadeira as escolhe e coloca para dançar, com braços-nadadeiras que lançam redes e balançam as saias como espuma das ondas, como rio caudaloso que oferece fartura de peixe a quem tem a fome como desafio e companhia.
Esquecida, não deixa a sua memória apagar o sofrimento de sua gente que se mistura, preto e indígena, como rio e mar que se encontram, não sem algum impacto e instabilidade até não se saber mais onde um começa e o outro termina.
Mesmo quando não se canta mais a ela, anda vagando por aqueles lugares. Mesmo sem pés e sem sentir a terra seca ou úmida, da beira. À margem, Santa Rita Pescadeira insistente em manter-se viva, galopa. Em mulheres que se encontram na dor, nas feridas que raramente estão à mostra, mas também não cicatrizam.
Ao passear pelo torto arado de Bibiana e Belonísia, sinto tantas coisas me tocando os poros, as dores, o rosto que ilumina e faz cavar as marcas e ondas do tempo. Leio metáforas que consigo agarrar e fazê-las minhas. Como alguém escreve ao ponto de parecer que roubou um sentimento de dentro da gente? Itamar Vieira Júnior faz isso com a gente.
É assim que leio e me arrodeio dos mistérios da casa de Zeca Chapéu Grande sepultado na Viração, mas não sem antes ter sua vida honrada por todos os filhos, de sangue, de santo e de cura que foram beneficiados por suas rezas, raízes, chás e brincadeiras de jarê.
Tenho encontrado afinidade e vínculo com o universo de Água Negra.
Penso na vida de dona Miúda que serve de montada a Santa Rita Pesqueira. Me preocupo com Maria Cabocla e seus seis filhos. Prendo a respiração com Belonísia sendo a mulher valente e cuidadosa com a terra e os vizinhos que são também família.
Não posso deixar de pensar na beleza que é erguer a casa da mesma terra que se planta, come, vive, se nasce, enterra as regras, os restos da gestação e sepulta o corpo quando a alma já não está lá. A casa como corpo, vivo, que, se mal cuidada mostra os ossos e as entranhas a quem não deve vê-las.
Amo a força da letra, da aula, do ensino como aquilo que move. Me comove o senso de comunidade, a relação com os bichos, o endurecimento diante da exploração e da fome. Como explicar a aridez da alma de forma mais bonita que alguém dizer que “estiou dentro dela”?
E eu agradeço como aqui, Itamar fez plantio e, por entre minhas costelas, deve agarrar-se alguns dos resultados de suas sementes. Minhas entranhas, as tripas, estão mais floridas, sou capaz de sentir. Meu coração cavalga tão rápido quanto a Rural nas mãos de Sutério. Comunidade é tudo que sou, que sei e que quero ser quando crescer.