"Cem anos de solidão" e os modos poéticos e possíveis de pensar os objetos
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”
-Gabriel García Marquez
Esta frase inicia uma obra-prima da literatura. Cem Anos de Solidão narra a história da família Buendía, fruto de uma cálida terra de nome Macondo. Um personagem, no entanto, torna-se emblemático na saga da família dos Aurelianos, Úrsulas e Arcadios: o cigano Melquíades, responsável por apresentar o gelo e outras tantas novidades àquele povoado distante e fictício de García Marquez que hoje povoa também o nosso imaginário.
Em uma de suas passagens por Macondo, com a exposição de uma imensa lupa capaz de eliminar as distâncias, o cigano profetiza que “dentro em pouco o homem poderá ver o que acontece em qualquer lugar da Terra, sem sair de sua casa”.
Melquíades estava certo. O que ele não previu foi que, além de vermos o que acontece em qualquer lugar da Terra, é possível também interagir com indivíduos de diversas partes do mundo. Surgem territórios de fronteiras embaçadas que não conseguem ser explicados pela cartografia antiga.
A conquista dos espaços e o completo reordenamento da noção de velocidade propõem maneiras distintas de nos fazer presentes. A complexa tessitura cibernética, fruto da técnica que tanto fascina as pessoas, viabilizou a emergência de um contexto permeado por inúmeros agentes humanos e não-humanos, uma espécie de convite para repensarmos a já empoeirada ideia de antropocêntrica (que, vale ressaltar, os povos originários sempre souberam).
Não mais importa se é silicone, gelo ou os últimos lançamentos de wearables, chatGPT ou DALL-E 2: estamos encantados, fisgados e também amendrotados, aterrorizados por um modo de vida em que a técnica convida à reorientação de nossos sentidos, nossa economia, nosso tecido social.
A tecnologia propõe novas relações com os outros, seja esse “outro” uma pessoa, um dispositivo, a questão ambiental. Todo esse complexo elabora uma subjetividade híbrida, uma outra posição para as peças do tabuleiro, o modo de pensar o próprio tabuleiro e também as suas regras.
Na obra “O contrato natural”, Michel Serres propõe que, de forma distinta do contrato social, o contrato natural deve partir para “[...] um novo léxico que inclui a voz das coisas do mundo” (DI FELICE, 2020, p. 67). Neste sentido, a sociedade deve ser pensada não apenas como um imbricamento das relações entre pessoas, sujeitos, mas na interação, na relação que ocorre com outros seres vivos, objetos, coisas, das colisões e atravessamentos entres estes.
A pandemia do coronavírus, o desmatamento da Amazônia e o reordenamento da vida cotidiana cada vez mais em torno das tecnologias digitais são apenas alguns exemplos de como não é possível pensar na sociedade sem considerar essas relações. Assim os objetos de Macondo, a partir do olhar de Melquíades podem ensinar uma outra forma de olhar o mundo.
No realismo fantástico, García Marquez constrói de forma ímpar o fascínio pelos objetos. O ímã, por exemplo, seria “a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia” e o fato de caldeirões, tachos, pregos e parafusos correrem ao encontro daquela magnífica pedra tinha uma explicação:
“As coisas têm vida própria. Tudo é uma questão de despertar a sua alma” – lembrava Melquíades.
Estamos preparados?